Bolsonaros e Felicianos: O espelho que não queremos ver.
Por Antony Diniz
Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d'água...
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d'água...
Gota D` água – Chico Buarque.
Tempos difíceis esses em que vivemos.
Há algum tempo, em um aula de sociologia, discutíamos um texto do Pierre Bourdieu: As artimanhas da razão imperialista. Nesse texto o sociólogo francês reclama sobre a tendência de se usar moldes de pesquisa e tendências de analise cegamente, a partir de uma sugestão de que sofremos de um imperialismo intelectual que nos vicia e coloca em cheque nossa própria atitude na pesquisa. Em certo parágrafo mais nebuloso, ele sugere que o racismo não existe no Brasil nos moldes americanos e, portanto, seria infrutífero usar o modelo de análise deles para o nosso caso. Lembro-me bem que um dos alunos, decerto por não ter compreendido todo o argumento, chegou à conclusão de que o racismo no Brasil não existe.
Bem, muitos concordariam com isso. Não superamos o mito da democracia racial no Brasil, e números recentes podem sugerir que o que vemos é uma melhoria nesse quesito. Como todos os outros preconceitos na contemporaneidade, o que acontece diante de nossos olhos não é uma melhoria, mas antes uma mudança de eixo. Não encontramos mais o preconceito nos “lugares” onde costumávamos procurar por ele, e descuidadamente concluímos que ele não existe. Eu defendo que o que assistimos é o deslocamento do preconceito. Uma absorção de certos valores que pregamos, mas não professamos. Uma adaptação do capitalismo á mais uma reviravolta, e o triste metamorfosear de discursos poderosos (porque revolucionários) em propaganda comercial. Desde que se descobriu que negros, gays, mulheres e outras minorias, representavam um comercio ainda á ser explorado pelo marketing, o capitalismo criou meios de inseri-los socialmente.
Desde então o cinismo virou a tônica. Fingimos uma compreensão da diferença que não possuímos, e uma tolerância que jamais tivemos começa a ser alardeada em termos discursivos (ainda que o controle e a opressão se faça sentir em toda a parte).
Recentemente, a mídia alardeou denuncias sobre dois deputados, em tom de “curiosa bizarrice infantil”. Declarações colando a homossexualidade á ameaças á família e mesmo a pátria, atrelando as mazelas do continente africano á uma maldição bíblica (como se o capitalismo e o imperialismo não fossem os chicotes que tem açoitado á África á anos e anos, relegando áqueles povos ao abandono e á miséria), alardeando um moralismo chulo e um conservadorismo de péssimo nível (na esperança de conseguir votos dos setores reacionários desse país, em geral ligados á segmentos religiosos de direita) são a coroação de algo muito maior. Na Microfísica do Poder, Foucault sugere que a corrupção e degenerescência política dos lideres é um reflexo de formas mais miúdas de degenerescência política, ou seja, a corrupção política do líder reflete a concepção política do povo. Bolsonaros e Felicianos nada mais são do que o reflexo de uma geração que tem tanta tolerância com a diferença quando qualquer outra que já tenha caminhado sobre esse chão. Até mesmo a forma com que tratamos desse caso é sintomática. Toda a reação em torno disso também. Uma espécie de circo onde ninguém - exceto á grande multidão de espoliados e apedrejados que tem tudo a perder com essa discriminação que invade a Constituição Brasileira (uma anomalia que se pretende humanista e defensora de direitos e isonomia, mas que já caduca e sempre foi omissa) - realmente se importa com os efeitos dessas declarações. O racismo já foi formalmente criminalizado, a violência contra a mulher também, mas a luta contra a homofobia ainda carece de justificação para ser criminalizada. Quais justificativas serão necessárias? Alem do número (impreciso, mas nem por isso menos alarmante) de assassinatos e casos de violência diariamente divulgados pela mídia (que não nutre nenhuma paixão pela causa e, portanto, não pode ser acusada de parcial) contra gays, travestis, lésbicas e transgêneros? Esses deputados serão autuados por racismo, mas e quanto ás declarações homofóbicas? Essas passarão em branco. Enquanto não for mais rentável o silencio, todos agirão como se a homofobia desses deputados, e as demais formas de preconceito, fossem “pisadas na bola”, ou engraçadas pautas de programas humorísticos pseudo-intelectuais (será que homofobia é mesmo uma piada?), ou meras curiosidades de pé de página nos sites de noticias da internet. Essas declarações são atos de violência. É como se todos os dias novos ataques pipocassem, e ninguém toma medidas efetivas á esse respeito. Endossamos o ódio e o preconceito com nossa inércia.
Um amigo meu, mandou e-mails para os conselhos de ética do senado e da câmara, e convidou á todos que fizessem o mesmo. É pouco, mas é uma medida. O pior é se indignar e não fazer nada. É preciso conservar o espírito dessa indignação e refinar os modos de materializa-la. É preciso se conscientizar que todo contato é um contato pedagógico e que todos nós estamos implicados nisso, irremediavelmente.
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